Há duas
semanas tomei conhecimento de uma história assustadora: um jovem de 18 anos,
que era sistematicamente agredido física, verbal e psicologicamente por seu
irmão mais velho, publicou um pedido de ajuda no Facebook. A história impactava
pelo relato das agressões, pelas imagens dos ferimentos e hematomas, e pelo
desespero do rapaz.
Seu pedido acabou por mobilizar uma enorme
rede de solidariedade na internet, serviços de assistência social e entidades
de defesa dos direitos humanos. Pessoas de todos os cantos do país se mobilizaram
no sentido de oferecer apoio, garantir a integridade do rapaz, de colocá-lo em
segurança em um ambiente em que pudesse estar dignamente, livre de qualquer
ameaça. A ONG Cellus de Contagem e o Centro de Referência LGBT de Belo
Horizonte prestaram a assistência direta ao rapaz e mantiveram informados os
ativistas e militantes que estavam acompanhando o desenrolar da história.
De tudo
isso alguns aspectos me chamam a atenção, apesar do rumo positivo que a história
tomou, todas elas aparecem no pedido de socorro do garoto e acredito que
merecem análise.
O primeiro é o fato das agressões
acontecerem na própria casa da vítima e o agressor um familiar, ou seja, o
rapaz era vítima de violência doméstica motivada por homofobia.
O segundo ponto
foi o fato do rapaz já ter procurado ajuda antes, já ter solicitado apoio
policial e já ter tentado denunciar seu agressor e ter sido deliberadamente ignorado pela autoridade policial.
Isso me deixou emputecido (com o perdão da palavra).
Por último, me
chama a atenção um trecho do pedido de ajuda onde o rapaz diz “não quero tentar
desistir de minha vida novamente”, ou seja, o garoto chegou a pensar em suicídio como alternativa para
acabar com seu sofrimento.
Apesar do meu estranhamento, este tipo de
agressão é muito mais comum do que temos noção ou do que as estatísticas
oficiais dão conta de registrar, muitas LGBTs sofrem diariamente ou já sofreram
algum tipo de agressão ou discriminação em seus próprios lares, e assim como milhões
de crianças, adolescentes, mulheres, idosos ou deficientes são diariamente
vitimizados em suas residências, sofrem com xingamentos, ofensas, torturas,
abusos, privações e toda sorte de humilhações perpetradas por seus próprios
familiares.
Uma família que
agride - como a do rapaz que motivou este texto - é uma família que está
inserida em uma dinâmica de violência doméstica (independente da motivação e de
quem seja o agressor), ou seja, é uma
família onde a relações se deterioraram de tal forma em que aquele que é
agredido deixa de existir como indivíduo, perde autonomia, é despersonalizado,
é privado de manifestar sua vontade e submete-se às vontades, aos valores e aos
desejos de seu dominador.
E era esta a
situação deste rapaz!
O garoto estava
despersonalizado, a mercê de alguém que julgava ter o direito de humilhá-lo,
agredi-lo e dispor de sua vida como bem entendesse, e que se dava o direito de
assim o fazê-lo por conta de seu vínculo com a vítima e justificando seus atos
por sua crença religiosa.
Em seu relato, o
garoto conta que já havia chamado a Polícia algumas vezes e que esta, em vez de
cumprir seu papel de encaminhar os envolvidos ao Distrito Policial mais próximo
para que a agressão fosse devidamente registrada e se tomasse as providências
necessárias para punir o agressor, tratou as agressões como mera desinteligência.
Os policiais que atenderam a ocorrência se arrogaram do direito de fazer pregações
religiosas à vítima e de agrediram mais ainda a vítima, ao estigmatizá-la,
humilhá-la e tratá-la com preconceito. Esses policiais não só prevaricaram de
suas atribuições, como legitimaram as agressões, deram razão ao agressor, que
certo de sua impunidade se tornou mais violento.
A situação se
agravou de tal maneira que o rapaz em seu desespero diz “não quero tentar desistir de minha vida novamente”, a
afirmação foi escrita na mesma semana em que um garoto de apenas dez anos se
suicidou na cidade de Vitória/ES, por não suportar mais as intimidações e as
humilhações que sofria na escola, onde bullying homofóbico corria solto sem que
providências eficazes fossem adotadas (cabe um post sobre isso).
Fico aqui
pensando nas milhares de pessoas que passam pela mesma situação do garoto desta
história: são agredidos em casa por
familiares, ignorados pelo poder público e sem perspectiva alguma que a idéia
de por fim a própria vida e se ver livre do sofrimento se torna sedutora.
Em teoria – às vezes só em teoria mesmo – é
em nossa casa e com nossa família que devíamos nos sentir seguros, acolhidos, é
com nossa família que tradicionalmente estabelecemos nossas primeiras relações
sociais, família que aprendemos nossos conhecimentos básicos, e onde
compartilhamos situações históricas, culturais, sociais, econômicas e afetivas.
Mas como a família deste rapaz, muitas
famílias abrem mão de seu papel de proteger e socializar o indivíduo, rompendo
com o pacto social estabelecido, e se inserindo em um ciclo violento.
Assim, é preciso debater formas de garantir
os direitos fundamentais daqueles que são violados dentro de suas casas. Pensar nas mulheres, idosos, deficientes,
crianças e adolescentes, travestis, lésbicas e gays que não tem acesso a
internet, que não têm acesso a políticas de atendimento, e que não vêem alternativas
além de se submeter ao agressor ou acabar com a própria existência, já que
ninguém os vê e ninguém os ouve.
É urgente que deixemos de ser invisíveis
aos olhos da sociedade e do Poder Público, que se crie mais e mais políticas
públicas que atendam as vítimas de violência doméstica, as vítimas de
homofobia, ou as vítimas de qualquer agressão de caráter discriminatório, aconteça
dentro de casa ou não! Cabe discutir
sobre a necessidade de criar espaços que acolham às LGBTs que são
sistematicamente agredidos por suas famílias, que são expulsos de casa e
privados do convívio familiar.
Precisamos de políticas que criem
mecanismos que inibam e punam agressores, e que acolham e garantam a
integridade daqueles que são vitimizados; Necessitamos de políticas que
capacitem os agentes públicos para atender adequadamente e acolher aos que
recorrem aos serviços, e não vitimizá-los mais uma vez perpetuando as
agressões. E de serviços que invistam em educação em direitos humanos e atendam
toda a família inserida em um ciclo violento.
Precisamos de
políticas públicas que preservem a integridade física e psicológica do
agredido, onde a vida seja tratada como maior bem do ser humano, de
políticas que ofereçam condições de uma existência digna e a perspectiva de um
recomeço livre de violações!
___
A extorsão,
o insulto,
a ameaça,
o cascudo,
a bofetada,
a surra,
o açoite,
o quarto escuro,
a ducha gelada,
o jejum obrigatório,
a comida obrigatória, a proibição de sair,
a proibição de se dizer o que se pensa,
a proibição de fazer o que se sente,
e a humilhação pública
são alguns métodos de penitência e tortura
tradicionais na
vida da
família. Para castigo à desobediência e exemplo
de liberdade, a tradição familiar perpetua uma
cultura do
terror
que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e
contagia tudo com a peste do medo.
- Os direitos humanos deveriam começar em casa
– comenta comigo, no Chile, Andréz Domingues.
(Eduardo Galeano)
PS: Por gentileza assinem petição contra a PEC 99 que quer dar poderes a instituições religiosas cristãs de propor ações diretas de constitucionalidade e inconstitucionalidade ao STF e defende a laicidade do Estado: CLIQUE AQUI
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