Há um tempo atrás perguntei à minha mãe
se ela queria ter um filho gay. Perguntinha bem sacana, ela já tem um filho
gay. Foi de maldade mesmo.
Primeiro ela me olhou
desconfiada, como se perguntasse Onde esse moleque quer chegar? Depois ela enrolou,
disse pra eu parar de bobeira, que estava ocupada, ficou resmungando, fez uns
sons estranhos (algo parecido com errrr...
hããã... romha... jfgjwh... gdughd...) e não me respondeu. Como eu insisti
no assunto, ela me disse que isso não importa mais, que me ama do jeito que eu
sou, que tem muito orgulho de mim, e que eu sou o filho que ela queria!
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Cena de Brothers & Sisters - Nora e Kevin |
Amei
a resposta, óbvio, mas fiquei pensando no “isso não importa mais” que ouvi dela e
relembrando dos momentos em que minha homossexualidade importou.
Minha mãe é uma mulher
conservadora, tem muitos valores diferentes dos meus. Teve uma infância dura,
começou a trabalhar ainda criança, estudou pouco, casou-se aos 16 anos por ter
engravidado. Foi educada em uma família de valores morais rígidos, onde homens
e mulheres tinham papéis demarcados, e sair deles era transgressão das grandes.
Como toda família
tradicional, a minha tem lá os seus tabus, seus segredos. Sabe aquelas
histórias que todo mundo sabe, mas ninguém toca no assunto? Então, infidelidade,
sexo antes do casamento, aborto e homossexualidade são alguns exemplos desses
tabus. Só se fala nesses assuntos se for para condenar, e reafirmar que em
nossa família essas imoralidades não são toleradas.
Foi nesse meio que eu cresci. E foi nesse ambiente familiar que um dia contei ao meu irmão que sou homossexual. Ele, para minha surpresa, que me
apoiou de cara! Depois contei para minha mãe, e aí a notícia se espalhou. Parte da
família quis colocar o assunto no rol dos temas proibidos, alguns deram uma
afastada e passaram a me evitar.
Minha mãe não me condenou,
ela simplesmente silenciou sobre o assunto. Ela evitou o assunto o quanto pôde,
e com o silêncio a gente acabou se distanciando um do outro. O fato é que minha
mãe, como muitas mães de LGBTs por aí, nunca quis ter um filho gay. E eu não a
condeno por isso! Ela não quis, eu não escolhi ser, e ambos tivemos que aprender com
a situação.
Cena de Orações para Bobby |
Minha mãe nunca me censurou
abertamente, nunca me chamou de abominação, coisa do demo, monstro, pervertido,
ou qualquer outro adjetivo parecido, em tese ela me aceitava. De repente, ela passou
a reclamar quando eu passava a noite fora, a se incomodar com algumas amizades
que eu tinha, com o meu distanciamento e ruptura com as religiões. Às vezes me
perguntava indiretamente se era isso mesmo que eu queria.
Várias vezes percebi em suas
falas um monte de discursos carregados de preconceito contra homossexuais,
termos como bichinha,
boiola,
viadinho,
entre outros. Aquilo me irritava demais, e uma vez disse a ela que assim como
ela falava dos gays vizinhos e de alguns dos meus amigos, outras pessoas poderiam
naquele momento estar falando a mesma coisa de mim. Isso a perturbou.
Eu podia deixar as coisas
como estavam, deixá-la criticar quem bem entendesse, mas não achava justo, optei
por conversar. Resolvi abrir espaço para o diálogo e finalmente começamos a falar
sobre o assunto, sem rodeios.
Uma das primeiras coisas que
ela me disse foi que nunca desconfiou de minha orientação sexual, que não sabia
que tinha um filho gay, nunca tinha parado para pensar sobre como é ser mãe de
um homossexual e que não sabia como lidar com tudo isso. Me disse que umas das coisas mais importantes que fiz foi ter tido a coragem contar a ela.
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Cena de Will e Grace - George e seu filho gay Will |
Tivemos inúmeras conversas,
e nelas fomos revendo nossos valores. Eu estava em um momento que precisava
muito que minha mãe me compreendesse, que me conhecesse e participasse da minha
vida. E foi ficando claro de que ela precisava da mesma compreensão. O filho
que ela idealizou não existia mais, e isso não deve ter sido fácil para ela.
Falamos sobre os nossos medos,
ela me disse que tinha medo de que eu sofresse com preconceitos, que seria
doloroso para ela se soubesse que eu fui discriminado ou agredido. Disse que
não precisaria sair de casa para ser discriminado, o silêncio e a indiferença
com que ela estava me tratando era um exemplo de preconceito, e machucava mais, pois vinha dela.
Ela me disse que sonhou em
me ver casado, dando netos, construindo uma família. Que queria me ver como um
homem honesto e trabalhador. Disse a ela
que casar e ter filhos ou não, independia da minha orientação, e que quanto a
ser honesto e trabalhador já podia se dar por satisfeita, tinha feito o seu trabalho direitinho. Enfim, com o tempo passamos por inúmeros temas
que povoavam o imaginário dela e do restante da família.
Foi um período bem interessante,
de nos re-conhecermos, de eu perceber o amor incondicional de minha mãe, e
aprender a recebê-lo, e de minha mãe entender que mesmo que eu fosse heterossexual,
jamais seria o filho que ela idealizava, foi um tempo para ela perceber que
pouca coisa mudou e que ela, como mãe, não falhou comigo.
Essas conversas, essa troca
de impressões e sentimentos nos reaproximou, voltamos a ser muito ligados, mas
de uma forma mais sincera. Ela teve de me respeitar pelo que sou e eu tive que
respeitar o tempo dela, levou um bom tempo, e às vezes ainda voltamos ao tema,
ampliamos as discussões, revisitamos nossos sentimentos.
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Eu e minha mãe |
Hoje, minha mãe é bem aberta,
foi a primeira a acolher uma tia que aos 49 anos resolveu se assumir lésbica. Cuida
dos meus amigos que estão em processo de saída do armário, fica horrorizada
quando conto de algum amigo que teve que sair de casa por não ser aceito, se
indigna com os inúmeros casos de homofobia, e se diverte com as milhares de bobagens que eu confidencio a ela.
Enfrentou as discussões
dentro de casa, cresceu como pessoa, deu novos sentidos aos seus próprios
valores e redefiniu os valores da família, acredita que é possível conversar sobre
tudo e que só não se dá jeito na morte. Não virou uma militante do PFLAG, não entende muito as diferentes terminologias que o meio LGBT utiliza, mas sabe que as pessoas precisam ser aceitas e amadas como são! E nisso ela manda muito bem!
Vive dizendo que só foi
possível crescermos e ampliarmos nossos horizontes, porque conversamos, falamos de nós mesmos, estivemos
abertos um para o outro, nos compreendemos e nos respeitamos; E que pouco
importa o que eu ou meus irmãos somos, ela só sabe que somos filhos dela, nos
ama, e é feliz por nos ter.
E eu sou muito feliz por ser
filho dela, mesmo sabendo que ela não sonhou em ter um filho gay, mas tendo a
consciência de que ela sonhou ser minha mãe e é feliz em me ter como filho,
independente do que eu seja!
PS: Por gentileza assinem petição contra a PEC 99 que quer dar poderes a
instituições religiosas cristãs de propor ações diretas de constitucionalidade
e inconstitucionalidade ao STF e defende a laicidade do Estado: CLIQUE AQUI
Flávio, muito bom esse texto. É possível tudo quando existe amor. Ainda mais amor materno. Beijosss!
ResponderExcluirOi Michela,
ExcluirObrigado pelas palavras! Acredito muito no amor da minha mãe por mim, me faz bem é claro.
Mas nem todas as mães (e famílias) são com a minha, sei de muita gente, inclusive tenho amigos em que os familiares não são tão acolhedores... me resta ser amigo e oferecer apoio a eles, e de vez em quando emprestar minha mãe pra fazer a maternagem!
Beijo, e volte sempre aqui!
Parabéns pelo texto. Claro, sincero e compreensivo, sobretudo com o outro.
ResponderExcluirJoão,
ExcluirQue honra te receber por aqui! Acompanho sua história, é apaixonante e pretendo escrever sobre ela logo, logo! (assim que eu comprar o livro!!!)
Obrigado pela visita e espero te ver mais vezes por aqui!
Um abraço,
Flávio
eu me emocionei imensamente porque tenho uma história bastante parecida com a sua... e ainda mais porque minha mãe já está aqui em vida... mas me lembro todos os dias de ouví-la dizer: "não há ninguém no mundo que o ame mais do que eu."
ResponderExcluirOlá Leandro,
ExcluirObrigado pela visita e pelas palavras! É sempre bom saber que nossas histórias parecem com a de alguém, nos faz sentir que não estamos sozinhos no mundo né!
Vamos sempre ter a sorte de poder contar com o amor incondicional de nossas mães, com a aceitação, mesmo quando elas não estão mais aqui!
Espero te ver mais vezes por aqui, um abraço!
Flávio
Simplesmente adorei, foi muito bom ler isso, em vários pontos percebi que a minha história é parecida com essa. Minha mãe me aceitou muito bem quando contei pra ela.
ResponderExcluirObrigado Mário!
ExcluirVi que você comentou em outros posts e gostaria de te agradecer!!!
Sorte a nossa de termos mães que se dispõem a evoluir e a amar incondicionalmente! Nos dá a dimensão do quão temos de ser solidários e apoiar aqueles que não tem a mesma sorte! Amemos nossos amigos e apoiemos todos aqueles que precisarem!
Um abração,
Flávio
E ai flavioo.... li o texto.... quem me dera se fosse assim comigo.... rsrs adorei o blog!!! Bjussss
ResponderExcluirRe,
ExcluirObrigado por visitar o blog, fiquei muito feliz!!!
Um dia vai ser, não perde as esperanças não, acredito que vocês avançaram muito, muito mesmo... mas ainda tem muito chão pra percorrer!
Não esqueça de que eu te amo, e precisando é só gritar!
Um beijo.
Flávio
Acabo de passar por isso. Contei à minha mãe que sou gay. Na verdade ela que veio me perguntando. Foi uma conversa tranquila, porém notei que ela ficou bastante conturbada. Chorou muito, mas deixou claro que nada mudará entre nós e que me ama acima de tudo, porém precisa de um tempo para assimilar tudo na cabecinha dela.
ResponderExcluirFico com um pouco de medo de pensar no "amanhã", em como será, se algo irá mudar. Porém me sinto muito melhor em ter contato a verdade à pessoa que mais amo na vida.
Parabéns pelo texto Fávio, muito bem escrito e inspirador. Fique com Deus.
Hugo
Minha história bem parecida com a sua. Estou na fase do silêncio e ainda nao tenho a coragem necessária para chamá-la pra conversar.
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